sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Circuntristeza

O que você não sabe é que eu busco socorro nestas pequenas histórias, de malabares no semáforo, bolhas de sabão prestes a estourar, sons do apartamento ao lado, dor de amor que não quer curar, chuva batendo no telhado, pássaros sacudindo as penas molhadas. É preciso que a gente não sucumba à circuntristeza. Está em toda parte. É a solidão antes de pegar no sono, são as ideias que não me deixam dormir, é o delírio incontrolável, a perda de tempo com as burocracias,o medo que faz não falar o que sente, o orgulho que não deixa voltar atrás,a decisão que aponta um rumo incerto, o titubeio diante da novidade. É isso, que arde: as saudades. Circuntristezas. Pode chamar também de loucura, se tiver coragem, ou de morte, se estiver perto.
Somos equilibristas de precipício. E eu escolho as palavras nas quais me segurar para enfrentar a caminhada. É preciso aceitar a vida como puder ser. A vida é música cantada aos berros pra ninguém ouvir. Preste atenção nas notas. Elas podem nos levar a outro lugar.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Os perigos

Carla,
Sempre que falam de túnel, a referência que se tem é a luz - necessariamente encontrada no fim. Eu sempre me perguntei por onde se entra nos túneis. Penso que inícios e fins são muito relativos. Depende de onde estava e aonde pensa em ir. Todo fim é também início de alguma outra coisa. (Mesmo a morte, que dá início ao banquete dos vermes - mas não é disso que vou falar).
Não vejo razão para que se apavore durante esta travessia. Em um túnel, o leque de opções é restrito: voltar, parar, seguir. O que quer fazer? Eu aposto sempre na máxima de que é para frente que se anda. O medo, Carla, o medo é completamente aceitável. São muitos perigos. Clarice andava distraída por Copacabana e deparou-se com o rato. Vi, ontem, o motorista freando no cruzamento para permitir a passagem da ambulância e o de trás não sendo ágil o suficiente. Vi uma criança sofrer porque sua mãe não suportava que ela crescesse e não precisasse mais de seus cuidados. Vi um casal que jurou amor eterno diante de um impasse: persistir ou desistir. Vi uma mulher que gozava da solidão de repente se apaixonar. Vi um senhor depois de se aposentar querer ser professor. Vi um bebê quase cair do colo de seu pai. Vi um rapaz correr do amor feito o diabo corre da cruz e vi um homem viajar para longe para não encarar os fatos. Não sei se voltam.
Tem uma canção que diz que quem anda atrás de amor e paz não anda bem. Na vida, quem quer paz, amor não tem.
Seja o que for, sou mais o amor. Com paz ou sem.
Fique calma. Fique bem.
Nanda.

domingo, 15 de novembro de 2015

Escutador

Levo você na garupa, mas tem que ser depressa e você tem que vir inteira. Humana, discordante, bela, rastejando feito bicho, se quiser. Só se quiser - não sou de forçar. Quem decide me acompanhar deve saber que eu nada sei, e por isso me agarro às palavras para ter o que honrar. Nunca duvido das palavras. Mas não é qualquer palavra...é aquela que você não quer bem dizer, até acha que não, mas diz. Não há no mundo coisa mais importante do que a palavra dita. É um perigo. E Barthes já escancarou a fatalidade disso. Não é possível retomar o que foi dito, a não ser que se aumente: corrigir é, nesse caso, estranhamente, acrescentar. Ao falar, não posso usar borracha, apagar, anular; tudo que posso dizer é ‘anulo, apago, retifico’, ou seja, falar mais. Esses foram os rumores que ouvi. Tenho essa mania, de ouvir. Ouvir, assim como falar, é irreversível. E a escuta marcou um mim um traço, também incorrigível, de melancolia. Criei, não sei pra quê, um mecanismo composto por três etapas: ouvi/sei/não precisava ter ouvido tanto. Sou um escutador. Escuta-dor. E, como resposta a esse mecanismo, porque os ouvidos não são tapáveis, os meus trataram de adoecer. Eles se fecham quando bem entendem, mostram-se sob pressão, tiram o meu bom humor. Sinalizam que estou passando dos limites. O amor, Carla, depende de ser um pouco cego. No meu caso, surdo. Depois do encantamento é que podemos descobrir parte por parte e continuar amando o que sobra de nós. No bem-me-quer, mal-me-quer, a margarida está inteira e arrancamos, pétala por pétala, sem saber o final. Não há encantamento possível quando o vaso está vazio, as flores caídas.
O que estou tentando dizer é que, primeiro, tem-se a fome e a ideia de croissant. Diante do croissant, come-se primeiro com os olhos. É do que depende a primeira mordida. Sem ideia de croissant, é como ter sede sem ser de água. Não é sede.
Ainda bem, Carla, que os sentidos são cinco. O croissant que você escolheu para nós está com um cheiro ótimo. Passa o garfo pra cá.

Em compensação

Pensava naquele olhar de reprovação, a palavra que saiu errada, o segredo que não era pra contar, a opinião sem domínio de causa. A guerra. A lama matando a gente, a sena que acumulou, a topada na quina do armário, o amigo que nunca foi, a propaganda do Spotify, a grana curta, essa mesquinhez. Os ódios. Taquicardia logo ao acordar, esse medo, agonia. Barriga de chopp, intolerância, briga de casal, fim de amor, câncer. A dor do outro, a impotência, a violência. Os adiamentos. As antecipações. Gente fingindo prazer, gente que não quer viver, conversa sem fim. O imposto desnecessário, aquele mal entendido, a infestação de formigas da minha cozinha. O cano entupido, a banda que se desfez, café frio, a língua queimada, unha quebrada, roupa nova rasgada, dizer não pra alguém. A morte. A falta de sorte. A neurose.
Em compensação, o pensamento foi pegando estrada e vendo o sol se pondo entre as árvores. Brisa de verão, picolé de limão, macarronada de domingo. Olhos que se cruzam ao som de Vinícius de Moraes, o homem que diz tô (e está), gente que não freia o desejo por bobagem. Os perigos. Piadas entre amigos, indecências na madrugada, arrepio de constatação. Problemas ficando pequenos, dinheiro achado na rua, risada incontida, abraço apertado, suor na praia. Mergulho no mar, saber boiar. Prato chegando na mesa, copo cheio, o podrão da esquina depois da festa. Romances do passado ficando lá. Massagem nos pés. Bom humor matinal, queijo quente, ovomaltine, gelo na tônica. Bolo saindo do forno. Roberto Carlos falando de você, viagem de fim de ano, acordar sem ressaca. Pedalar com céu azul, sombra de coqueiro, telefonema inesperado. Chet Baker no carro. Annie Hall ainda no início, ser lembrada diante de um Klimt. Carta sendo entregue, encomenda no prazo, acordar na hora certa sem despertador. Carinho nas costas, dedos entrelaçados, cachorro abanando o rabo. Lembrar da música que não toca mais. Andar de chinelo, deitar na areia, morangos com leite condensado. Amor correspondido. Tempo livre. Ter um ouvinte. Não precisar falar.
Acordei achando a troca justa. Let’s try.