sexta-feira, 23 de abril de 2021

A casa

 

Enquanto desvio da noite atrás de Elis insone, resgato, sem saber exatamente o porquê, “A casa” de Vinicius de Moraes. Já tentei outras e por enquanto não funcionam. Por isso, canto incansavelmente seus versos até conseguir um ligeiro cochilo da pequena. Passamos mais tempo no embalo cantante do que no sono propriamente dito, mas o próprio processo garante algum descanso - no caso, o dela (ser mãe é isso). Não sei exatamente também como tornou-se possível construir um alento com uma casa que não tem nada de engraçada, nem o chão e nem as paredes, muito menos o penico — todos faltantes. Na verdade, eu sei. Faço uma voz bem baixinha, escolho um tom ameno e sigo quase sem pausa, pra que ela não tenha tempo de abrir um berreiro entre-versos. Na maioria das vezes o que acontece é que Elis se aconchega mais e mais a cada repetição, a casa vai ficando firme, como uma casa feita de tijolos (e não de palha ou madeira, veja bem). Quando não funciona, a segunda tática é reiniciar a música do meio de uma frase ou até de uma sílaba qualquer quando ela percebe a pausa, disfarçando minha tentativa de parar. De tanto amor ou exaustão, ela dorme.

Nas noites mais difíceis, Elis passeia sua mãozinha minúscula em busca de um pedaço de mim em que possa se agarrar, como quem sabe que eu poderia mesmo pensar em escapulir dali, dessa missão tão difícil que me dei. E penso, penso tanto que jamais poderia. Depois de embalar por horas um soninho tão mequetrefe, ela acorda restabelecida, olhões azuis me encarando, e eu, apesar de acabada, estou incrivelmente pronta para começar tudo de novo. Quem explica?

Acho que A casa (que não é) só pode ser a exata representação de uma mãe cansada. Ora sem chão, ora sem poder deitar na rede. Fazer pipi, desde que alguém te renda — é o que ninguém conta. E não se engane nem se assuste se lá da privada, ouvindo os choros de fora, você se apressar e já começar a balbuciar a primeira estrofe inteira. Não é fácil. Não é engraçado. Mas só rindo mesmo.