domingo, 17 de dezembro de 2017

Jão,

Como é que você consegue ser tão displicente com as coisas que são notavelmente importantes para o outro? No último verão, enquanto caminhávamos pelo bairro para ver os ipês florirem, eu tentei te dizer e você, como sempre, não ouviu. É que você só ouve o que quer, Jão. Tem essa mania escrota. Depois, é claro que fiquei aborrecida por nunca ser ouvida e ter que aturar você reclamando das mesmas coisas, as mesmas coisas, um inferno. Eu me calei e você pensou que eu estivesse consentindo, mas a minha vontade era de dizer que você sabe bem como ser um completo babaca e colocar o outro repetidamente na mesma posição, que é a de quem faz de você um pobre coitado. Foi assim há 10 anos, no caso daquela mocinha (qual era mesmo o nome dela?), e depois todas as outras que vieram depois eram a mesma, sem tirar nem pôr. Só você não vê. Outro dia li uma entrevista em que Paulo Autran falava sobre como era para ele atuar em uma peça que ficasse muito tempo em cartaz. Diz ali que era foda (Paulo Autran não disse “foda”, mas parecia mesmo foda) usar as mesmas falas, com a mesma expressão, por muito tempo. Que depois da décima vez aquilo ali parecia que tinha vida própria, com muito menos emoção. Lembrei de você com seu teatrinho. Deve ser exaustivo ser você.
Você perde tempo com bobagem, Jão. Reclamou tanto que as flores sujavam a rua toda e manchavam os carros e, enquanto reclamava, eu tava era achando lindo demais aquele rosa espalhado no asfalto. Eu tava achando graça dos motoristas ligando os limpadores e fazendo as flores voarem pra todo lado. Cheguei a comentar na hora, mas você perde poesia por bobagem. Manchar os carros.. onde já se viu? Bobagem!
Eu costumava ser menos raivosa e adorar aquelas tardes longas e cheias de trivialidades. Você se lembra de quando passamos a tarde no parque, caminhando, procurando sombra, reparando naquela criança que alimentava os patos com pipoca? Foi bom, Jão. Não era necessário falar muito e o silêncio não era desconfortável nem nada. Era fácil. Agora parece que a gente não cabe mais nos espaços, fica só a agonia e eu quero é correr. Se eu respiro fundo, você faz aquele negócio de supor que me conhece muito, muito bem. E me olha, finge que espera que eu diga da minha aflição, mas a verdade é que não quer saber de nada. Você diz que gosta das minhas histórias e de como eu reparo nessas coisas bobas, como quem dê pipoca aos patos, mas as minhas histórias servem enquanto e só enquanto for para você que eu conte. Há um tempo passei a inventar uns enredos só para ver você ser besta e acreditar que sabe de mim sem saber é de nada. Você é besta, Jão.

Oh, díos

Começando bem cedo, odeio que o telefone vibre no criado mudo enquanto o alarme toca e me desperte no susto. Iniciar o dia no susto é, na realidade, o que mais odeio. Odeio um bilhete de chefe colado na porta, precisando muito falar. Nunca se sabe o que vem. Pior ainda é flagrar o cozinheiro sendo negligente com a higiene - e ter fome. Arrisco, mas odeio. Odeio essas defesas, que mais expõem do que tudo. E repetir, repetir. Odeio não compreender o que o guri fala, mesmo ele se esforçando tanto para dizer. Só não odeio mais do que ver a menina mordendo as próprias mãos até que sangrem e eu não conseguindo acalmá-la. Odeio fantasiar por não ter coisa melhor. E ter ressaca no domingo, perdendo o dia de sol. Odeio nunca me lembrar o nome do porteiro (e que ele saiba tanto) e odeio as demoras. Todas.
Odeio o ato falho que atrapalha o disfarce todo. (Ouvir é irreversível). O constrangimento tomando conta e não tendo jeito. O 3G falhando no meio de uma música urgente, as mensagens de voz que não carregam, enviar e me arrepender e não poder voltar atrás. Odeio. Almoço desmarcado em cima da hora e eu não ter feito as compras da semana. Os panfletos colocados no para-brisa e a chuva colando tudo no vidro. O carro da frente jogando lixo pela janela, senhores idosos atravessando fora da faixa de pedestre. Odeio a agonia que dá, ver os senhores idosos tentando correr e não conseguindo e o carro vindo, o carro vindo.
Oh, Díos, os ódios.
Essa dor no pescoço que não passa e a cabeça que não para, odeio, mais do que acordar no susto, mais do que acordar no frio e ter que levantar, mais do que a água do chuveiro demorar para esquentar. Um pouco menos do que quando preciso dizer algo muito muito importante, um posicionamento firme, decisivo, momento crucial, e gaguejo.