quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Das demoras

Judith,

Eu, que tinha tudo no lugar, e não me mudavam uma vírgula, tenho me atropelado numa novidade sem fim. Antes era assim, você sabe. Nós tínhamos nosso castelo e as cartas não se moviam nunca. Ruas conhecidas, palavras à beça. A hora certa de ligar, as brincadeiras que se faz. Um jeito de tocar meu corpo sincronizadamente conhecido. Era bom, Judith. Era bom. Pra conhecer o mundo: planetário.

Mas Judith, agora é o atropelo, a novidade sem fim. Nós não temos nem as cartas! Imagine um castelo! Não temos ruas! (Palavras, ok, porque sem palavras também não dá). O outro ele vem quando menos espero. E quando espero muito, nunca vem. Telefona no meio da manhã me dizendo indecências. Diz que assim não dorme, se pensar. Examina meu corpo desordenadamente. Nomeia minhas marcas de nascênça e eu me pergunto onde é que elas estavam até agora?

Acho que ele não deve nunca saber o que vou te contar: é nas demoras que ele se presentifica.

Mas sshhh...

domingo, 23 de janeiro de 2011

Uma nota só

Maria,

Escrevo rapidamente só para dizer que aprendi a partir, finalmente.
Sabendo partir, acho que já posso me permitir ficar.

Um beijo.
Fernanda.

sábado, 15 de janeiro de 2011

"Eu queria que a mão do amor
Um dia trançasse
Os fios do nosso destino
Bordadeira fazendo tricô
Em cada ponto que desse
Amarrasse a dor
Feito quem faz um crochê
Uma renda, um filó
Unisse as pontas do nosso querer
E desse um nó."

domingo, 9 de janeiro de 2011

Dia branco

Judith,

Fez hoje um dia lindo. Falei isso mais de uma vez, porque o céu era tão azul, tão azul, que parecia pintado. Parecia promissor. Parecia um início. Ou sei lá o que. Pensei no tempo em que não percebia se o dia era bonito ou não era. No tempo em que isso não tava em jogo. Pensei no tempo em que não tinha jogo. Fizesse o tempo que fizesse, com nuvem ou sem nuvem, dia azul ou dia branco (se branco ele fosse...), não fazia a menor diferença.

E me lembrei de você, que anda nostálgica. Acho que me lembrei de mim também. Hoje não foi promissor, não foi início, não foi o que. Qual nada. Foi um dia desses, em que tudo podia ter acontecido. (São tantos dias assim, não são?).

Tenho feito planos a curto prazo, Judith. E tenho feito planos para quando os planos são frustrados. (São tantos planos assim, não são?).

Se amanhã for de sol, de sol seremos.

Maria.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Pra ver melhor

Porque o ano começou e hoje são quatro de janeiro de dois mil e onze (e eu ia dizer mil novecentos e noventa por que, meu Deus?), botei meus óculos novos e liguei o som do carro nas alturas. Tocava se você disser que eu desafino, amor. E porque estava de óculos novos, aqueles óculos, vi a criancinha correr na praia vestida de abelha e lembrei de Paula, que foi baiana por meses, com turbante e tudo. E vi um casal recente fazendo juras de amor no ponto de ônibus sem saber que pode acabar. Sem querer saber nada de nada. E vi o gordinho indo pra escola ainda com sono carregando um peso danado na mochila, mas cantarolando baixinho. Que será que cantarolava o gordinho?

E vi uma mulher dar a luz logo cedo, dizendo que nunca mais na vida se deita com homem nenhum se é pra passar por isso. Mas assim que pegou o filho no colo, com um sorriso doce, tenho certeza de que pensou que não tem coisa melhor no mundo. E ainda querendo ver mais, vi uma amiga mostrar a barriga pra quem quiser ver, orgulhosa de ser mulher. E de ser mulher pra um homem.

E querendo ver mais ainda, vi mais ainda...