segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Para onde vão os trens

Toda estação está sempre no meio do caminho. Para saber a origem dos trens, não se deve perguntar de onde partiram, mas quando.
Outro dia conheci um rapaz no quinto vagão, o de cargas leves, por pura obra do acaso. Nunca sei onde vou me sentar quando embarco em uma viagem. A vida não vem com lugares marcados. Passeamos juntos. Viagem curta, nem sei calcular. A bagagem dele, uma mala só, enorme, cheia de boas lembranças, coisas a esquecer. Segurava firme contra o peito. Não queria perder nada. Disse que eram resquícios de um tempo bom. Um tempo que deveria ter durado mais. Um tempo que passou. Você e eu sabemos o que é não querer perder nada, o que são resquícios de bons tempos e o que é o tempo passar. Mostrei pra ele as minhas coisas: cabiam no bolso. Contei que há duas estações abri a bolsa na calçada e pedi que escolhessem o que quisessem e que levassem e fizessem bom uso. Em troca, que deixassem boas novas memórias que me fossem úteis, agradáveis, fáceis de carregar. O que ninguém quis, joguei fora. Não podia levar peso. Queria correr. Subir e descer pelo caminho. Queria manter espaço de sobra pros acasos. Acasos são imprescindíveis nessa jornada. Ele me olhou assombrado. Não sabe é verdade, não sabe se conseguirá um dia se desfazer de suas coisas. Ele me dise que, por ora, estava bem assim. Na previsibilidade dos trens. Os trens, a gente sempre sabe aonde vão. Trens não pegam atalho.
Acho que ele se esqueceu de que mesmo nos trens o acaso opera. Você salta antes, eu salto depois, e talvez nunca nos vejamos. É possível que o único lugar livre seja ao seu lado, é possível que esteja sempre ocupado. É possível que queira viajar só.
Tentei convencê-lo de que somos nossos maquinistas. Abrimos portas, fechamos portas, paramos, nunca paramos, expulsamos, esperamos que subam. Atrasamos, adiantamos. Tentei convencê-lo de que faz bem descer e caminhar um pouco. Meio sem rumo, sem pressa, sem pretensões de chegar. Fora do trem a gente corre perigos outros, mas também sente o sol aquecer os cabelos, a areia entre os dedos do pé, aquela garoa boa que refresca a alma.
Ando pensando em comprar uma bicicleta. Com garupa.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A prisão é dentro da gente

Carla,

Não há prisão maior do que a liberdade.
E por falar em infinito, sinto infinitamente, sinto tudo, sinto muito. A existência disfarçada em tédio para suportar que cada dia seja um novo dia. A vida, em todas as suas dimensões, mostra-se opaca e densa e eu a carrego saltitante e crescente (ocupa tudo) no peito, nas marcas que nascem no meu rosto, no peso sobre os meus ombros e nesta carta.
Acordei diante do espelho e no espelho eu não sei o que vi. Tenho pavor de saber, porque saber de si é irreversível. Ocasionalmente finjo ser outra, finjo ser leve, finjo não me importar. Mas a verdade é que a importância se presentifica a cada pequena culpa. Estou condenada, estou entregue, estou aqui.
Não tenho dúvidas: a prisão é dentro da gente. E que confusão é ser prisioneiro de ninguém. A gente até tenta justificar as mil armadilhas em que se mete, mas acaba que, no fundo, bem no fundo, se a gente pensa um pouco mais, fica tão óbvio que tropeçou no próprio pé! Que constrangedor! Melhor fugir a assumir. Inventa uma pedra pro caminho, várias pedras, uma muralha enorme. Mas a muralha só separa a gente do próprio desejo. E se o desejo fica de lado, separa a gente de alguns sonhos e pessoas. Que triste. Que insensato.
Ficar sem escrever é um pouco fugir, porque depois de escrita a palavra é possível usar a borracha. Mas a intenção de palavra não se apaga nunca. O que se quis escrever está lido.
Saio do divã para o horóscopo, que deve ter previsões melhores. Quero saber o que vem depois, e meu depois é amanhã, quando acordar, tiver feito planos, tiver conquistado tudo. What next? What next, Carla? Diga você, porque não posso acreditar nas vibrações de Júpiter. Vênus e Marte unidos em virgem não podem me dizer. O sol sobre Urano, o eclipse total da lua, Deus.
Deus me proteja de mim. E dele. E desse silêncio todo de sentido.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Beira do mar

Como se fosse verão, o sol machuca os ombros anunciando sardas. Passos apressados na areia quente, o vapor cortado pelas canelas, cheiro de milho verde e barulho de mar. Ondas diminuídas pelo píer, peixes quase raros para tristeza do pescador otimista que lançou o anzol sem notar que passava na hora uma criança em função gandula oficial do frescobol alheio. Incansável. A senhora das viseiras decidiu inovar e trouxe consigo sutiãs de todas as cores. Sem provador nem nada, desconta-se da numeração o sutiã velho sob o sutiã novo e tudo fica bem. As cores são vivas mas, na dúvida, o preto básico. No máximo listras. O casal do lado senta bem pertinho para testar a câmera naquela luz. Ele sorri e aperta o botão errado enquanto a moça mantém um bico que deve representar um beijo lançado - não se sabe bem pra quem.
Calor, muito calor. Um vento derruba as viseiras e leva o guarda-sol pra longe, um perigo. Três fazem que vão ajudar, não ajudam, e por uns minutos elaboram teorias sobre como fincar o pau na areia pra que não seja necessário segurar a sombrinha a cada rajada. Maresia. Protetor solar fator 70. Maré alta. Sede. Areia grudando em tudo, suor escorrendo na barriga. Sal. O jornal difícil de dobrar, a conversa sobre a noite anterior, o casal da farofada com um acúmulo de latas que fez a alegria do catador. 

A água com areia brinca na beira do mar
A água passa e a areia fica no lugar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

o canto do curió

Como num despertar, abri os ouvidos para o canto dos pássaros. Poderia ter descoberto há anos, mas só depois foi possível saber que os curiós são valiosos porque podem reproduzir uma sequência com até vinte e oito notas. O que os diferencia entre si é o tipo de sequência e o número de repetições de que são capazes. Seu canto é ensinado pelo homem e ele canta enquanto houver luz. Vive assim. Vive  vinte, trinta anos assim. Entre agosto e dezembro estão em seu auge hormonal e, portanto, lírico. Cantam para seduzir, mas cantam sobretudo para enfrentar outros machos e demarcar território. Cantam, no amor e na guerra. Um torneio começa com dezenas de pássaros em círculo, visíveis uns pelos outros, enfrentando-se com fúria e repetições incansáveis, excluindo da roda e da competição os pássaros que interrompem seus cantos, seja por fadiga vocal, seja por uma pausa distraída. O cantor determinado que piar até o fim torna-se campeão, torna-se cobiçado por colecionadores (não por fêmeas), torna-se caro. Os mais temperamentais, apesar de treinados podem frustrar bastante o seu dono. Acuados pela cantoria alheia ou simplesmente pouco entusiasmados pelo território ou pela fêmea que não conquistarão, recusam-se a cantar. Retornarão no ano seguinte meio desenganados ou serão vendidos por um preço de banana para alguém que talvez goste deles também em silêncio.