quarta-feira, 6 de abril de 2016

Rival.

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É preciso lembrar:

na fantasia do outro,
a gente ocupa qualquer lugar.


...


casa

O Beijo dourado e reluzente de Klimt ocupa a principal parede da minha sala. Klimt soube misturar dois corpos envoltos por um manto de ouro e ternura e, assim, eternizar um amor. Os olhos fechados confirmam a calma dos amantes correspondidos e o que acabo de dizer. Na lateral, Femme en Pleurs de Picasso, angustiadíssima, para me lembrar de que nem o céu nem o inferno. Os livros da estante seguem uma certa ordem, que eu disfarço com um Leminski bem no meio da coleção de Saramagos para que nunca percebam que dou atenção a essas bobagens. Os teóricos vêm primeiro e são seguidos pelos autores preferidos. O último nicho comporta os que nunca terminarei de ler, presentes de quem não me conhece bem e os dicionários. Atrás da cortina, quase escondida, uma placa da Tower Bridge, onde nunca estive, mostrando que Londres fez alguém se lembrar de mim um dia. A máscara do carnaval de 2012, Meu Destino é Pecar e uma orquídea artificial que, olhando bem, precisa de limpeza. São Francisco, um olho de boi e um abre-caminhos, mostrando toda a minha incoerência, a garrafa do vinho da primeira noite em casa servindo de vaso de flores e uma coleção de tsurus - minha mais nova obsessão.
Quem visita a minha casa quase sempre diz que tem a minha cara. Eu me lembro de estar sentada no chão da sala, ainda vazia, e de me perguntar o que vem depois. Que boas memórias seriam construidas ali e o que faz de uma casa um lar - se são as marcas de taça na mesa, o suor que fica no sofá, os lençóis gastos, os convites para entrar.
Você tem razão. A casa da gente é onde a gente está. Onde a gente está por inteiro, sendo a gente mesmo, do jeito que der pra ser. Entre amigos, bons amigos, que até suportam que a gente esteja fora do lugar. Com companheiros que fazem a gente se descobrir um pouco mais. E também nessa bagunça, em que é melhor não saber.
Seja bem vindo. Sempre tem café. Quase sempre tem comida. Faz calor.
P. me disse que devo aceitar, de uma vez por todas, de uma-vez-por-to-das (e separou as sílabas para que não ficasse dúvida), que jamais compreenderei tudo. Ele não diz isso à toa. Há anos acompanha essa minha saga de tentar racionalizar pra ser menos sofrido. Pergunte se depois de racionalizar fica tudo bem? Fica nada. Depois de racionalizar eu passo a querer o peito cheio de emoções indescritíveis e isso não acaba nunca. É difícil ser eu. Uma complicação. Você vai dizer que se lembra também de Clarice e de que viver ultrapassa todo entendimento - essa senhora detestável. Eu sei que ultrapassa. E vivo. Mas explique o coração saltitante, irritantemente saltitante, aceleradamente saltitante, um sambista!, sem saber bem a razão. (Viu? Lá vou eu de novo.)
São sete e trinta da manhã e quando acordei a casa cheirava a café. Meu vizinho, como de costume, falava ao telefone encostado na janela e parecia preocupado. Antes mesmo de abrir os olhos, tive uns três ou quatro pensamentos sobre o sonho que precedeu meu despertar e, enquanto me esquecia dele convenientemente, fui tendo aos poucos consciência das coisas. Primeiro onde estava, depois o reconhecer do aroma quente que invadia o quarto, os acontecimentos do dia anterior, a conversa desconexa no fim da noite e essa taquicardia - que tem sido bastante inoportuna.
A questão é que P. me diz essas coisas mas não é tão didático com a segunda parte, que é a de contar o segredo de viver um dia e depois o outro, mais outro, e, calmamente, não se importar. E como faz pra aceitar essas inquietações e não tomá-las como inquietações, mas como um desagrado banal, um mau humor hormonal, fome: essas coisas que todo mundo tem.
O que é que é que te agita o peito, hein?
E se só viver não for tudo?