quinta-feira, 28 de julho de 2016

Do pior


Meu amigo, a vida não é só coisa boa. Vamos falar disso também. Vamos falar da solidão, vamos falar sobre precisar falar e não ter quem nos ouça. Vamos falar da disputa entre os amigos, mesmo os que torcem uns pelos outros, da criança que atravessou correndo na frente do carro e da taquicardia de susto. Vamos falar do pior: perceber que foi substituído e não fez falta. Aquele cansaço e ainda ser quarta-feira. O corte de cabelo que deu errado e você precisando se sentir bem. Sair da vida de alguém que queria que ficasse. Vamos falar da gente sendo rígido, tentando sempre manter uma coerência exagerada sobre tudo. Vamos agir imprevisivelmente, soltar uns gritos por aí, ter ressaca moral em seguida. Beber demais, perder a saúde, perder o bom senso, perder amigos por bobagem. Vamos contar que sentimos saudade do que nem aconteceu, essas expectativas imbecis. Vamos ter expectativas. Vamos nos frustrar. Vamos ter expectativas novamente. As mesmas. Dormir com alguém que nem nos interessa. Vamos lembrar de outro bem no meio e sentir saudades.  Vamos estragar tudo. Dizer para alguém que está de saco cheio, sem escolher tanto as palavras. Vamos falar rasgado, ser escrotos, magoar as pessoas. Ou então vamos sumir, não dizer nada, culpar o tédio, o trabalho, o capitalismo, o direito de não querer. Vamos culpar o outro. Vamos contar os nossos medos, confessar que rezamos na hora do aperto mesmo sendo ateus, perder a fé de vez. Vamos duvidar de tudo. Desacreditar das pessoas, achar melhor que tudo acabe. Vamos fazer promessas que sabemos que não vamos cumprir. Vamos sustentar uma opinião por orgulho, pra não dar o braço a torcer, só pra irritar. Perder o ânimo de levantar da cama e ter que levantar mesmo assim. Querer café e esquecer que estava acabando. Comprar um doce e estar mofado. Vamos às festas e não ver graça nelas. Achar a música alta, ter dor nas costas, supor que a roupa não está adequada. Cometer gafes e só perceber depois. Tentar consertar e piorar as coisas. Vamos chegar em casa e ficar pensando, pensando demais, perder o sono. 
Escrever cartas sem saber para quem queremos mandar. Vamos nos expor. 
Nanda.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Convite II

Vamos falar de mais coisas boas, só das coisas boas. Vamos falar das dancinhas do Lenine, dos gritos da Elza Soares, de acordar ouvindo Rubel. Vamos falar do sol da manhã invadindo a sala aos poucos. Vamos falar dos dias de céu azul. Da feijoada ficando pronta, vamos falar da sobremesa de hoje. Pudim de leite, vamos falar dele: caramelo caindo dos lados. Vamos falar dos pés na areia numa caminhada sem rumo. Vamos falar do mar quente do nordeste. Vamos falar de sexo. Da mão na cintura antes de abrir a porta. Vamos falar da trepada de pé na cozinha. Vamos falar da sede que dá. Não vamos deixar de falar de Diadorim, minha neblina, Riobaldo nos lembrando de que mel se sente é todo lambente. Vamos falar de amar alguém um dia desses. Vamos falar disso depois, não agora. Vamos falar também das coisas ditas que gostamos de ouvir, das palavras que achamos divertidas, vamos falar palimpsesto três vezes. Ou mais. Vamos falar de amigos cantando alto, juntos. Vamos falar de dedos estalados no ritmo da melodia. Coisas boas. O artesanato do hippie da esquina, sem cobrar nem nada. Vamos caminhar cambaleantes depois de duas cervejas. Vamos pechinchar a saideira, mesmo sem precisar. Vamos falar do medo depois de perdido. Vamos falar de quando tomamos coragem de repente. Vamos falar do dia seguinte.
Vamos falar pouco, cada vez menos. Vamos sair com pessoas com quem seja possível não falar demais. Vamos sair com pessoas para falar de coisas boas. Vamos sair sós, ir ao cinema, à padaria. Vamos comprar sonhos. Vamos falar sobre o filme novo do Almodóvar e suas cores. Vamos comer chocolates durante a sessão e falar da sede que dá. Vamos falar dos abraços partidos. Vamos ser maus, quando for necessário. Fazer comentários cruéis sobre alguém. Fazer isso entre amigos, sem grandes danos, sem magoar nem nada. Vamos nos livrar do ódio. Vamos ficar bem.
Vamos escrever cartas para passar o tempo, para passar um recado, para passar a angústia. Vamos escrever cartas, produzir envelopes com páginas de revistas, mandar cartas pelo correio. Vamos escrever e não mostrar a ninguém. Nunca mostrar. Ou vamos publicar, pra todo mundo ler. Foda-se. Vamos fazer isso.