quarta-feira, 25 de maio de 2016

os ventos

Meu bem, 
 
Sim, veio o vento sul, como o previsto. O que não estava previsto era que derrubaria do ninho um filhote que ainda não sabia voar (voltar). Enquanto andava até o restaurante passei por este casal. Ela segurava as sacolas e direcionava de longe, apontando o ninho entre os galhos, altos demais para que ele os visse - mesmo estando na ponta dos pés. Um senhor frágil, com as mãos delicadas em concha. Lembro de ter pensado que talvez o filhote se perdesse para sempre ou que, ao contrário, seria a chance de aprender a ser só, buscar o que comer, fugir dos perigos. 
 
(Com o vento sul, a lembrança do frio que costumava fazer quando éramos crianças e de terem nos ensinado a tapar as orelhas com o cobertor para nos protegermos.)
 
Tenho dedicado meu tempo às trivialidades: descartar documentos que já não valem, resolver as pendências de cartório, apresentar ao médico os resultados dos exames que adiei para fazer, reler o diário de 1999 e pensar em todos os amores que pareciam os últimos, insistir no crochê, testar a receita de minha mãe.
 
Como o vento leva as flores caídas da planta que infelizmente deixei morrer, vai o tempo levando os dias. Segundas de folga, terças, intermináveis quintas, sábados de feira, domingos de tédio, a pressa, a pressa. Saudades, querido, de soltar foguetes, o céu cheio de balão, aquela bagunça aqui dentro, que deus me livre.
 
Enquanto te escrevia, senti o cheiro de amaciante das roupas recém-estendidas perfumando a casa, ouvi Buika (sempre meio doída) e fiz planos.
Um beijo.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Pausa da mente

Se puder, diga a P. que vou dar um tempo por aqui. Diga que me desculpo por não ir pessoalmente dizer que não volto, mas é que já tentei antes e não achei muito eficaz. P. sabe ser insistente e sabe escolher o argumento ideal para prolongar essa nossa coisa por mais um tempo. Dessa vez não vou dar muita chance. Ainda que diga que fugi, ainda que diga que resisto, ainda que mande de volta mil recados, vou me fazer de surda e adiar. Eu nunca fui de adiar nada, Carla. Já te falei isso, que eu vou vivendo e vou tentando viver tudo de vez, sem pausa. E de que adianta ter pressa nessa vida? 

Amanhã, e isso você não precisa contar, vou acordar mais cedo para poder enrolar na cama. Tomar o café por ali mesmo. Rever os emails ainda deitada, abrir a janela para sentir o vento fresco da manhã, ouvir música enquanto me alongo. Depois vou andar a pé pelo bairro, ver se abriram alguma loja nova, olhar vitrines. Ir até a padaria, escolher um doce. Mais tarde, esperar dar fome pra saber de quê. P. não entenderia alguém que espere a fome chegar. P. tem horários, P. come para que a glicose não baixe demais, P. faz exercícios pensando em envelhecer bem.

Amanhã, só amanhã, vou desmarcar uns compromissos e não vou explicar nada. Vou dizer hoje não dá e pronto. Fique com isso. E se irritar alguém, que fique irritado também. Amanhã não vou me importar. Sempre fui de me antecipar e fazer tudo certo para que ninguém se irritasse e amanhã não vou me importar. 

Se puder, avise. Se já for passar por lá... se não, mande alguém. Isso, mande alguém. Alguém que nem me conheça e que nem saiba explicar direito e que acrescente algum motivo porque supôs, pelo seu jeito de pedir, que deve ser coisa séria.

Em seguida me escreva contando como foi. Vou esperar.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Little daisies

Comigo começa quase sempre com uma taquicardia logo ao acordar, e é possível prever que não demora muito até surgir uma frase pronta, insistente. A última, porque planejei ir à feira ainda cedo, me lembrava Mrs. Dalloway, que decidiu que ela mesma compraria as flores e foi. Comprou little daisies - nome mais sonoro não há . Às vezes passo dias assim, reparando melhor nas coisas, nos sons que escuto de dentro do meu apartamento, nos gestos das pessoas que passam por mim. Uma quase-ternura, um suspiro. Ontem vi um bebê se mexer dentro do ventre de sua mãe, enquanto ainda é mais ideia do que gente, e os sorrisos antecipando a sua chegada. Hoje, ainda nada. Crise na Grécia preocupando a Europa e eu aqui, ainda me importando muito pouco com isso. O porteiro do meu prédio improvisou um vaso de flores artificiais para enfeitar o hall e ninguém gostou, mas também não se recusa uma boa iniciativa. Não sei se discretamente alguma coisa acontecerá ao vaso na mudança de turno. (Acompanhemos). Outro dia, um guri atravessava a rua pendurado em seus pais pelos braços, um de cada lado. Achei graça daquelas perninhas encolhidas descobrindo um balanço novo, achei graça dos pais, que não participavam da brincadeira porque discutiam um assunto importante ou por já estarem habituados a ela ou então pelo cansaço nos braços ou ainda por estarem preocupados com o próprio atravessar, achando que se o menino caminhasse poderiam andar mais ligeiro de uma ponta a outra. E nessas horas a escrita vem, é inevitável. Invento uma palavra nova e o guri torna-se balançante, invento enredos e suponho a vida acontecendo, o porteiro amanhecendo num dia bom e orgulhoso de seu gesto, a risada dos vizinhos sendo boas novas, trazidas pela visita surpresa que tirou os sapatos para entrar na sala e está ali, com as pernas cruzadas no sofá, esperando pelo café.
Escrever não muda nada e, no entanto, muda tudo.
(Você entendeu.)

Em punho

Primeiro renasce uma quizila do passado oferecendo de bandeja um posto de rival que me sinto tentada a aceitar. Ser eleita rival, nesses termos, de repente faz de mim forte, vista, impetuosa e, é claro, cruel. Imediatamente me rio toda dessa volúpia odienta de que me ocupei por uns minutos. Se ela grita e no inaudível escuto meu nome, isso fala mais dos meus ouvidos do que de sua voz. Acho graça da minha vontade repentina de estar em guerra. De ter com quem lutar. 
Empunho armas que nem tenho, encho a boca de palavras que sei que não ousarei dizer - palavras que ferem, porque a gente se sabe capaz de ferir quando é essa a intenção. Sabe também, entretanto, que a animosidade nesses casos não passa de uma bobagem toda nossa. Sabe que não há disputa que não seja com nossos próprios fantasmas. Sabe que o Outro desafiador é a gente não podendo assumir que foge das oportunidades porque tem medo de ser feliz, que avacalha um super emprego, que dispensa amores por nada, que muda de ideia quando está quase lá.
Se a injúria do passado necessita ter quem odiar, é porque as coisas por lá não devem andar fáceis e, nesse ponto, temos mais coisas em comum do que gostaríamos. O lugar de rival desperta em nós, porque somos também parecidas na maneira de amar, a força propulsora do próximo passo. E, com sorte, divide um pouquinho a responsabilidade pelas nossas mazelas. Acho que sinto saudades de quando era possível culpar o outro todinho e repetir sem saber. Descobrir-se é perder a importância demais. E não tem volta.
 
Quando a gente entende que odiar é fruto da fantasia, todo sentimento também vira?