terça-feira, 27 de março de 2012

Contracapa

Disseram um dia que se Deus existe, mas se existe de verdade, ele brinca com a gente. E agita os dedinhos num emaranhado de fios, fazendo a gente toda, sem distinção, de marionete. É homem, é mulher, é criança, todo mundo se agita quando o polegar levanta e vai pro lado no ritmo do indicador. E cai, porque Deus é desses. E quando dizem que Ele faz a gente toda de marionete, é pra dizer que alguns acasos são sacanagem pura. É diversão do demo. É o destino sendo cruel só por ser, pra fazer graça.

São essas brincadeiras sacanas que fazem às seis da manhã tocar a nossa música, uma música que nem se ouve mais, que nem está na moda, de um cantor que já até morreu. E ao meio-dia, a sobremesa no trabalho (onde nunca tem sobremesa) é aquele doce de amendoim, igualzinho ao que fez você quase morrer de tão empolado. E à noite, na portaria do prédio, chegar de surpresa aquele livro que estava emprestado há anos e que já tinha até sido substituído e o novo exemplar já tinha até sido perdido também. E na contracapa do livro, com a sua letra, aquele amor que seria pra sempre e o primeiro livro de muitos, de toda uma vida que seria vivida assim, cheia de dedicatórias.

Deus é isso, que faz a gente lembrar.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Sempre

Lá vou eu de novo, sendo eu mesma insistentemente, portando a rigidez de sempre, a intolerância de sempre, portando sempre essa cara e esse jeito de andar meio torto, e cuspindo vespas às seis da matina só por ter acordado e ter desejado me demorar um pouco mais na cama. Lá vou eu de novo, acordando às seis da matina e vestindo a roupa de sempre, com essa preguiça de sempre, comendo o pão com manteiga de sempre e também o pão que o diabo amassou, pra conseguir chegar ao meio do dia. E no meio do dia, bem no meio do dia, vou eu de novo, continuar o dia porque ele precisa acabar. E quando o dia acaba, ainda sou eu mesma, daquele jeito do início. Se alguma coisa mudou - porque alguma coisinha, peloamordedeus, tem que mudar -, foi coisa pouca e eu não vi. Hoje não vi mesmo. O dia tava acabando, eu tava acabando, sei lá mais o quê.

terça-feira, 6 de março de 2012

Ela faz cinema

Quando ela chora, não sei se é dos olhos pra fora e não sei do que ri. Faz uma cena de arrancar os cabelos e só eu já vi jurar três vezes que estava morrendo de amor. E estava. Quando ama, gruda aqueles olhos grandes nos olhos do outro, mira bem mirado, mas é pra fazer do outro um espelho. Pede pra abrir mais um pouquinho...e se penteia. Pede pra piscar...passa um batom. Ninguém dirá, entretanto, que não estava ali. É intensa, ama com paixão, odeia sem pudor. Trepa (mas não diria assim). Quer ser amada (mas quem não?). Pinta a pele e desenha no corpo traços que não precisa saber de onde vêm. Uma beleza de Januária na janela (até o mar faz maré cheia pra chegar mais perto dela), e se sabe bela. Atrai, subtrai, trai. Bagunça o coreto e reza em seguida, que é pro caso de não ter perdão.

Convence a gente de dizer, também como espelho, o que é que se passa, afinal. Mas ela sabe que a verdade é sempre meia-verdade. Ela sabe que a gente sempre é e não é. Ela sabe que meus olhos vêem tudo como espelho também, e que eu embaço dia sim, dia sim, pra poder ver só o que quero (suporto, consigo) ver. Sabe que eu invento história pra tornar a vida mais doce e encho o quanto posso as dores de poesia, como forma de bordear bem depressa um furo que eu mesma fiz. (É que não suporto muito os furos). Ela sabe que meu olho também (só) me vê.

Ela faz cinema e escolhe sempre os mesmos papéis, que é pra atuar impecável, com um improviso majestoso, variando dela mesma em múltiplas facetas. Faz seu papel tão direitinho, que a gente toda aplaude de pé e pede bis e entende, finalmente, que ela pode ser mil, mas não existe outra igual...