sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Ilibada


Você pareceu surpreso quando, naquela madrugada, chegaram mil mensagens com planos, muitos planos, minha afobação e pressa, um desejo de concretude das coisas que até então estavam só na imaginação. Interrogou meu sono, muito querendo saber o que me faz perdê-lo, e disse que não esperava ver-me assim, vulnerável. Ilibada, foi a palavra que você usou. Diga você, que é ilibada, o que te tira o sono.
Vou te dizer uma coisa, vou te dizer muitas coisas, mas não pense ser uma tentativa de te convencer de que sou ou de que não sou, seja lá o que for. Estive apenas tentando compreender em que momento desta minha loucura toda ainda consegui, sem saber que o fazia, parecerilibada ou, que seja, do tipo que não se afeta com as coisas.
Ontem, por exemplo, o noticiário mostrava a cena em que uma criança síria era resgatada dos destroços de uma explosão e parecia resignada. Uma criança resignada, nos destroços. Isto me tira o sono.  Por que não chora, esta criança? Quem se acostuma ao desamparo? Eu não.
Por falar em desamparo, na noite passada tive de novo aquele sonho. Sonhos de repetição são sempre perturbadores. Estamos todos ali, procurando uns aos outros em meio ao caos, à espera de um tsunami que sabemos fatal, e que já vem, e não nos encontramos. Sempre falta alguém. E eu corro, eu corro demais, e não há esconderijo que dê conta e não estamos juntos. Que diabos é isso, além do óbvio?
E para mostrar que nem precisa de tanto, roí as unhas por causa de uma reunião que nem chegou a acontecer. Pelas coisas que tenho a dizer, mas ainda não é a hora. É preciso ser sutil e muito ouvir para saber a melhor maneira de falar. Ouvir é uma arte.  Fazer-se ouvir é um desafio.
E você? Dorme bem?

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Só o precinecessário

Se não escrevi antes foi porque não achei justo endereçar a você as minhas agonias, fazer você ter que lidar com elas, reler minhas frases quase sem sentido, supor sensações novas, reconhecer antigas, dar resposta ao que eu sei que não tem resposta. E não precisa ter. Vamos combinar assim: faremos disso um monólogo e seremos espectadoras de nós, como na verdade é a única possibilidade. Você me diz da sua vontade de ser outra, e eu nada posso fazer par ajudá-la a não ser dizer que seja. Que acorde promíscua um dia e dê telefonemas tanto-faz-para-quem. Que sinta, às 10h30, uma vontade súbita de rezar, entre na primeira igreja que cruzar o seu caminho e faça promessas de nunca-mais-todas-as-coisas. Que decida, antes de dormir, chorar mais e sem pudor. E acorde achando bobagem demais. 
 
A essa altura você já sabe que tu não te moves de ti, não importa o que faça. Mas não, não fique triste! Do mesmo lugar é possível esticar os braços e parecer mais alta. Abrir os braços, oferecer um abraço. Agachar e se esconder. Do mesmo lugar é possível gritar forte e fazer-se ouvir. É possível, juro. Sem mover nem um pé do chão, é possível retocar o batom e descer o decote. É possível fazer coisas. Sem mover-se um centímetro sequer, é possível ofender alguém. E, entre tantas outras coisas, é possível amar. Amar bastante. Amar até demais. Sendo você mesma, é muito possível se reinventar.
 
Mas antes, é precinecessário que se perdoe. Perdoe suas manias irritantes, sua dificuldade de fazer contas, sua impaciência com os mais jovens, sua intolerância com outros gêneros musicais, seus furos. Deixe para lá o rigor, perdoe se o mau humor dominar a manhã. Acontece. Perdoe suas coisinhas, é muito importante que perdoe suas coisinhas. Não deixe de perdoar também essas ideias que você tem de infinito, de profundezas dos átomos e de partículas subatômicas. Você não precisa de nada disso. Deixe para os físicos, tem razão. 
 
Pensar, mesmo no infinito, não te leva muito longe e ainda te distancia do que precisa ser visto e está perto, ao alcance dos olhos: as castanheiras estão fazendo muda e para andar nas calçadas é preciso mergulhar os pés nas folhas. É preciso mergulhar sem medo de bichos e buracos, para atravessar as castanheiras. E logo mais estão os ipês, que me lembram a páscoa e estamos em agosto. Ao alcance das mãos está minha sobrinha, soluçando, e ainda nem nasceu. Ao seu lado, picaria se fosse cobra, a vida acontecendo, a gente querendo, querendo, não cansando de querer. 
 
Preste atenção. É preciso estar parado para ver bem.