segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Minha filha,

 

Sei que, ao menos por enquanto, você fica inteiramente submetida aos meus dias. E se passo por um deles que me seja difícil, você se mostra sensível à minha agitação, vivendo um alvoroço também aqui dentro. Não foram fáceis esses nossos últimos meses. O pesadelo de ontem, uma enxurrada tomando a cidade, o mar (la mer? la mère?) invadindo as ruas e fazendo tudo tudo desmoronar. Pela manhã, outro atropelamento, escancarando a nossa devastadora impotência diante da vida. Ainda assim, esses acontecimentos não superam os nossos últimos meses.

(Comprei um Valter Hugo Mãe para ver se finalmente nos acalmamos. Só agora percebo com mais clareza de que se trata, afinal, desse significante, mãe, se inscrevendo aos poucos.)

Haverá um dia em que os seus dias terão belezas e dificuldades só suas, e então você poderá escolher compartilhar conosco ou guardar para si os seus sentimentos. Por enquanto, ao menos por enquanto, você e suas piruetas me acompanham nas noites insones e por isso hoje te explico — o que se descobre logo que se é feito gente — que são demais os perigos dessa vida. Mas te explico e de antemão me desculpo por antecipar constatações que, sem dúvida, são duras. Sempre fui mestre em antecipar, achando ingenuamente que, assim, me livraria dos atropelos. Mas ninguém se livra dos atropelos.

Seu pai diz que teme que você não tenha a chance de passar pela experiência democrática que tivemos - não agora, quando tudo parece confuso, mas há pouco. Seu pai não chega a ser um pessimista, eu juro, mas ele diz essas coisas. E não me parece um pessimista porque, ao mesmo tempo em que diz essas coisas, ele provoca sutilezas capazes de encorajar a seguir e a acreditar que algumas conquistas são irrevogáveis. Ele não diria assim, é claro. Mas é o que eu acho que ele faz quando me faz caber num abraço. Eu toda. E isso ainda não ser tudo. Mesmo quando me falta, especialmente quando me falta, apareço inteira. Não sei explicar.

Pra muita coisa importante falta nome.

Essa carta é um aviso, Elis. Mas também é um lembrete das saídas possíveis para a dureza dos dias. Quando tudo parecer difícil é porque provavelmente é. Ainda assim, você não precisa estar só. Busque a companhia de pessoas de onde se tire alguma poesia. Algum amigo que te escute profundamente, sem nem ter o que dizer. Um dia de sol ao ar livre. Um tempo em silêncio. E no que mais você conseguir.