segunda-feira, 9 de abril de 2018

As horas

O real roda e põe adiante: essas são as horas da gente. É assim que Riobaldo fala do amor e é também como ele fala do sertão, o que me parece de uma similaridade assustadora. A aridez virando poesia, só nas mãos de Guimarães Rosa - e talvez nas suas. Por isso volto a te escrever.
 
Porque eu vinha caminhando pela avenida nossa senhora da penha e fui longe nos meus pensamentos. Perdi algumas certezas, o que foi oportuno, mas também perdi o tino de perguntar e isso não é bom. Não eram as respostas que importavam. Era um querer saber insistente. Eu disfarçava, disfarçava bem! Como é que se constrói um navio? Pra que servem os faróis? Como foi que se descobriu que ovos e trigo e óleo e açúcar e sal e cenouras, regados a chocolate, alegrariam tantos domingos? Eu disfarçava. Você nunca?
 
Mas não dá para falar dos bolos pelas suas reações químicas, pelo fermento fazendo tudo crescer, se antes vem um cheiro de infância e o sabor lambente de memória viva. E também não é possível pensar na maquinaria de um grande navio sem interrogar aonde levam, aonde podem levar. O que podem trazer, talvez. E nem entender os faróis mais pelas suas coordenadas do que pela dúvida sempre latente: tem alguém ali? Essas é que são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todo
 
Como é que a gente pode querer saber de navios e não querer saber exatamente quem a gente é, no inteiriço discordante? E como é que a gente pode de fato saber?