terça-feira, 28 de abril de 2020

Nada será como antes

Guimarães Rosa, que é quem sempre me socorre nos momentos mais difíceis, diz, tão atual, que qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Foi a primeira coisa que me veio à cabeça quando recebi a sua carta. Por isso veio tão bem-vinda. As nossas palavras são um respiro no meio de tudo isso. Que bom que nessa rotina sem pausas e com tão poucas ausências você conseguiu um tempo para me escrever. 
 
Alguns dias permitem um mínimo de e-laboração (neologismo que veio a calhar), mas em geral a angústia se instala como um elefante na sala. As tarefas de casa, as notícias na TV, esse trabalho improvisado, os medos, as incertezas. Mal dormir, acordar. Reparando bem nas pessoas, penso que não estou sozinha espremida entre tromba e patas. “My sweet quarantine” está cheia de insônias por aí, não tenho a menor dúvida. Tenho pensado muito nesse movimento, principalmente escutando as pessoas em análise, cada um com seu estilo e condições, criando recursos. Há quem esteja num mergulho narcísico desolador, há quem padeça da impotência diante do mundo e das coisas como vão. 

De alguma maneira, escancarou-se o desamparo, única coisa que faz de nós irmãos. Quando os privilégios são muitos, são pequenos conflitos e o tédio, quem diria, que balizam essa experiência sem nome. Nos casos mais graves, é mesmo a morte, impiedosa e ágil. Na nossa recusa fundamental em encarar nossos limites, a possibilidade da morte, a cruel mesquinharia capitalista, a absurda desigualdade que nos cerca, esse limite se impõe. Com muita cautela e sorte, talvez possamos aos poucos (não depois que tudo passar, como vínhamos dizendo, porque sabemos não ser coisa que passe) reinventar nossa existência. Sem a ingenuidade de sonhar com um mundo outro, mas um mundo em que nós possamos ser outros. Eu, você… alguns de nós.

Nada será como antes, é verdade.
Mas não é como se as coisas estivessem indo bem.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Os deslimites da palavra

“Ando muito completo de vazios” é a forma como Manoel de Barros inicia um dos versos mais bonitos que já li na vida. Atemporal, como todo grande poeta, ele consegue exprimir em umas poucas linhas a sensação das últimas semanas inteiras.

Com uma produção onírica insistente, tenho acordado exausta. Nessa manhã, imediatamente após o abrir dos olhos, lembrei-me deste verso em específico, o quarto de Os deslimites da palavra, que diz não posso mais saber quando amanheço ontem. Talvez pela confusão temporal que se impõe, talvez pela revivescência sazonal de sentimentos complexos ao longo da semana. Invejei, de alguma maneira, a habilidade do poeta em listar os princípios do que chama “didática da invenção”. Manoel de Barros nos instiga a capturar a voz de um peixe ou a palavra que sirva na boca dos passarinhos ou, de uma beleza sem nome, uma palavra para compor silêncios. Nesse ponto, acho que temos algo em comum. É exatamente com o suporte da palavra que a psicanálise nos permite uma aproximação com os poetas: apanhadores de desperdício, amantes de restos.

Às pessoas que escuto, quando sinto que há nós contorcendo frases, tenho recomendado a leitura dos grandes. Manoel de Barros, Guimarães Rosa e Mia Couto são ótimos desembaraçadores desse tipo de nó. Igualmente, uma boa música é capaz de liberar espaços, como um abre-caminhos para a libido. Ninguém sai ileso ao encontro entre Diadorim e Riobaldo no imenso sertão (que é dentro da gente), assim como não sai ileso a uma aliteração de Caetano. “Sou seu sabiá”, música que sei que escutou outro dia, tem o sss das asas do próprio pássaro, veja como dá para voar longe.

Com essas pequenas sugestões, feitas ali, onde a sugestão não cabe, não se trata exatamente de oferecer respostas nem aliviar a angústia, ainda que o alívio da angústia e alguma resposta tenham mais chance assim. Mas de fazer rodar o real. Com Manoel de Barros, hoje, por exemplo, pude pegar emprestados alguns recursos, nessa minha independência de algemas. E bom, a escrita veio.

Pronto: “do lugar onde estou já fui embora”.
São esses os deslimites da palavra.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Os dias, as horas

Dias vêm, dias vão, por aqui tentamos manter alguma normalidade. A começar pelo café da manhã, nem tão cedo que nos tire o privilégio de decidir a hora de despertar e nem tão tarde que nos faça esquecer a diferença entre terças e sábados. Ele me lê duas ou três manchetes e, não sei como consegue, argumenta com início, meio e fim, citando algum filósofo coreano que me faz precisar do google ainda antes das oito. Eu escuto, aceno entre um gole e outro, mas só processo a informação no almoço, quando devolvo uma pergunta que em geral eu mesma respondo. Ontem reparei que o sol já bate diferente na varanda e agora atinge apenas uma parte da mesa, onde coloquei aquelas plantas que precisam de mais luz. Noto que uma delas deu sinais de que precisa ser acomodada em outro canto. Até perceber o que era, quase afoguei a coitada. Mas não afoguei. Se tem uma coisa que tenho feito bem é conhecer as plantas. Antes não vingava uma e agora até o lírio, que andava todo sensível, está imponente, folhas brilhosas. Poderia até inventar um segredo importante sobre como fazer viver as plantas, mas não sei exatamente o que dá certo. Uma única dica é que acrescente mais terra quando a terra baixar - que é na verdade uma dica que veio da minha avó quando fingiu que olhou a foto da plantinha que eu trouxe do seu quintal e que mostrei por estar orgulhosa de (também) tê-la mantido viva. Aproveito os minutos de sol na varanda para manter alguma saúde (e vitamina D) e é pensando também na saúde que garanto uns pulos e abdominais dia sim, dia não. Finais de semana são dias não, preciso confessar. 
 
Os contatos exteriores estão reduzidíssimos e se não fossem os intervalos em que reinventamos o trabalho, estaríamos mergulhados num mundo nosso. Nada mal, eu diria. Nosso mundo tem cheiro de pão e Belchior na vitrola. Em toda inevitável solidão, é bom que alguém nos acompanhe em certas preocupações. É um verdadeiro privilégio quando se tem alguém, não que diga que tudo vai ficar bem, mas que teme do mundo as coisas que você também entende como assustadoras e, claro, a quem não falte coragem. Nada será mais como era antes. No mundo que se desenha, é preciso mais do que nunca saber ao lado de quem caminhar. Faço um pequeno exercício de me fazer presente para os queridos, e empresto minha voz recitando um trecho de livro aqui, uma poesia ali, porque se tem algo que pode ajudar a ultrapassar as amarguras é o afeto.
 
Para você, nessas palavras.