segunda-feira, 1 de junho de 2020

Paz sem Voz



Eu sei que você se aborrece com as minhas demoras, mas eu tenho me permitido algumas mesmo não sendo fácil para mim me ausentar. Sempre me lembro dos versos de García Márquez, em Memórias de minhas putas tristes, quando descobre que “a minha obsessão de que cada coisa estivesse no seu lugar, cada assunto no seu tempo, cada palavra no seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente ordenada mas, pelo contrário, um sistema completo de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, mas como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir a minha mesquinhez, que passo por prudente por ser pessimista, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que não se saiba que pouco me importa o tempo alheio”. É interessante, porque ainda ontem eu estudava Didier-Weill quando diz que a música tem essa função de nos tornar Sujeito cantante. Ele brinca com as palavras ao dizer cantante, porque é falante que o sujeito é. A obra de arte, já dizia Freud, não é lida por nós (vista, ouvida…) mas sim nos lê, vê e ouve. Está aí a identificação com o trecho do Gabito.

São delongas para me desculpar pela demora, mas também para dizer que precisei dela e impus que você esperasse. Não por maldade, porque não pensava exatamente em você e em fazê-la esperar por puro capricho, é claro. Gosto de você. E sei que você suporta porque entende essa espera. Não que precise, mas vou também dizer que não sou exatamente de paz, como você diz. Às vezes sou. Mas hoje, depois de rever os vídeos do manifesto antifascista que começa a nos dar notícias e esperança, eu voltei a sentir esse fervor no peito. Paz sem voz é conivência, Carla. Não podemos ser coniventes.
Longe de embarcar em uma de achar que dá pra mudar o mundo, propus (a mim mesma) que marcasse posição sempre que achasse importante não parecer conivente. Digo não, mesmo sabendo ser pouco dizer não. Atormento os meus vizinhos racistas, os que flertam com o autoritarismo. Bato panelas para que saibam que não estamos juntos. Não dá pra ficar confinada, e em paz, sem voz. Quase me envergonho de fazer tão pouco. Da minha posição privilegiada, isso não é nada, eu sei. Eu sei mesmo. Não precisa me dizer. Levo a vida e o trabalho com a máxima coerência que a minha neurose me permite. Mas, Carla, é na miséria do meu pequeno mundo que posso ver algum avanço e ter ânimo para seguir, atenta e forte.

Não temos (mais) tempo de temer a morte.
Espero que você esteja bem.
Um beijo,
Nanda

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