Talvez enquanto ouvia as histórias de minha mãe sobre sua infância e ela
repetiu aquela de quando, na primeira entrevista de emprego, aos treze,
usava o par de sapatos, herança da herança de não se sabe quem, e com o
pé direito escondia os furos do esquerdo. Se com esta manobra, além dos
furos, escondia a pobreza, a fome da família, as marcas do trabalho
excessivo já naquela idade, e, com a risada ao contar, escondia a dor,
não sei. Algo mudou. Se não foi isso, talvez o rapaz brincando com o
cachorro através do portão, naquele contorcionismo divertido, lambidas
entre gretas, eu de longe quase indo lá. Uma despedida longa: vai,
late, volta, lambe. E eu, de longe, quase indo lá. Algo mudou.
Não sei quando. Se foi o cara de Moçambique tocando kalimba na Place
d’Italie e eu gostando demais, se foram as notícias de casa enquanto
estava lá, mais palavras do que memórias, mais surpresas do que motivos,
mais nada. Ou se, voltando, foi essa possibilidade de ser completamente
outra, sendo exatamente a mesma. E teve também aquele dia, ouvindo
alguém desistir da vida aos poucos, quando quis citar Bernardo Soares
pra ver se, como para mim, a poesia teria este efeito facilita-dor.
E teve! É difícil saber quando foi. O novo fio branco que surgiu
anteontem, um aborrecimento ou dois a troco de nada, perder amigos em
plena terça, almoçar o churros da esquina sem culpa, a criança que se
recusa a falar me olhar pela primeira vez, abrir o vinho francês e tomar
com doritos, caminhar para o trabalho e descobrir que agora consertam
brinquedos no número quatrocentos e trinta e alguma coisa da avenida
nossa senhora da penha ou outra banalidade qualquer, nunca se sabe o que
foi. Talvez, hoje, a pausa nos estudos para te escrever. Tomara.
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