segunda-feira, 20 de junho de 2016

Humanidades

São essas as coisas que estão acontecendo: da primeira vez até agora, os sustos. Não sei se conseguirei um dia me esquecer do que vi. Uma mulher gritando pra ninguém ouvir, gente confundida com bicho (mas quem dirá?), a falta de humanidade escapando ali, pela boca sempre aberta, pelos esfíncteres, pelos poros, pelas roupas cheirando a mal lavadas, por décadas de uma história desconhecida. Rosana passa muito tempo olhando para as próprias mãos sujas de tinta e pesca palavras ditas ao redor. Me olha, como quem nem me vê, e quer saber se vou ao seu aniversário. Digo que sim, não por delicadeza, não para que Rosana goste de mim, digo que sim porque assim, fora de contexto, para este convite não faz a menor diferença a minha resposta. Em dez minutos Rosana volta a me perguntar. Digo que sim. Sim, Rosana, diga quando. Sim, Rosana, faça o convite. Sim, Rosana, quando é que se comemora o dia de seu nascimento. Você sabe, Rosana, se fazia frio e você foi enrolada em muitas mantas e abraçada forte? Você sabe se era janeiro, se a cidade estava em festa, se fizeram planos pra depois? Sonharam com você, com cabelos encaracolados caindo nos ombros curvados, enquanto ainda nem curvados eram? Se a cor de sua pele lembrava a de seu avô? Se quando você sorriu, sorriu para alguém? Assim, de repente invento humanidades para Rosana. Invento para poder, em seguida, ver que já estavam todas ali. Rosana pede para ir embora e eu digo que sim. Se deseja ir, vá. Rosana deseja?
Da primeira vez até agora, os preconceitos todos escancarados, pra deixar de ser boazinha de vez, pra desmentir essa correção toda (que ninguém na verdade tem), pra mostrar que a gente não diz tudo o que pensa para não se sentir pequeno, como de fato é. Demais. O não saber tomando conta, vontade de humanidades, uma caça quase incansável aos quereres dos outros. O que é mais importante do que os quereres?
Sigo repetindo essa pergunta para não me esquecer dela, para não passar a achar que mais importante do que o desejo são as coisas em ordem, as coisas cheias de sentido, as coisas confortáveis aos olhos, e também para que Rosana comemore o que quiser, quando quiser, viva em festa, esteja eu convidada ou não.

Gente desejando demais, gente fugindo do próprio desejo, gente que nem sabe que deseja, gente que não sei se deseja. Gente, essa gente, a gente. Essas humanidades escapando também ali, pela boca que permanece aberta, pelos poros, pela raiva incontrolável, pelos cheiros, pelos olhares que não querem ver, pelo grito que não quer ser ouvido, pelos preconceitos todos, pelos medos, os sustos.

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