sábado, 19 de fevereiro de 2011

Empréstimo

Eu ainda não sei bem o que fez ele ver tristeza nos meus olhos. Pediu que eu mirasse outro lado, por precaução. Tive vontade de dizer que a tristeza está também nos olhos de quem vê, pra ver se com um clichê eu me livrava daquela ousadia que era a dele, de fingir que me adivinhava a dor. Não sei bem também se eu deveria parecer feliz só pra preservar uma certa contradição ou se estava em condição de me emprestar um pouquinho, emprestar um pouquinho os meus olhos como espelho, pra deixar que ele fale fale fale fale dele fingindo que eu é que estou em questão.

Então ele fala fala fala da dor dele. E eu sorrio agora meio amarelo, boca meio querendo fechar. Não consigo segurar muito tempo. Bebo um gole. Volto a sorrir. Ele não me conta nada porque se ocupa em dizer o quanto meus olhos tristes jogam tristeza pras pessoas. Pediu de novo que eu mirasse outro lado, e eu queria correr dali, daquela indelicadeza toda, mas ele também vinha com aqueles olhos grandes, coloridos, pra cima de mim.

Eu me perguntava um pouco se era só dor ou se poderia ter algo de místico nos encontros com as pessoas, porque uma senhora que ficou louca outro dia me mandava rezar insistentemente. Na sua alucinação, via muita carga pesada me rodeando e deus falava pra ela me dizer isso: deus manda você rezar, obrigado. Você ouviu? É pra você rezar, obrigado. Obrigado. E talvez ela agradecesse tanto por eu ter me emprestado para ela também. Eu emprestava meu olhar, que naquela hora não era triste, era seguro. E emprestava meu ouvido para que ela se lembrasse de um irmão morto brutalmente e para que pudesse ser louca com dignidade. Ela, sim, rezava alto pra deus ouvir, e desvanecia de tempos em tempos dizendo que se não rezasse cairia. Cairia em tentação, completou por fim.

A sanidade, acho, tira da gente o direito de ser indelicado quando quer.

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